domingo, 21 de novembro de 2010

Do outro lado das árvores.





Por Maria Leonor Barbosa Soares


Tive já oportunidade de referir a necessidade de tempo e de concentração para perscrutar o espaço sensual e conceptual de Márcia Luças
[1]. O que desse exercício resulta para o observador dá a conhecer a maior e particular qualidade do seu trabalho. Márcia Luças constrói “dispositivos de interrogação” que contêm as indicações das etapas de formulação, desde a apreensão física de um trecho da realidade, numa experiência concreta e pessoal, até à identificação das questões sobre essa experiência, sobre as possibilidades de a colocar em imagem sem a descrever, sobre a aculturação da imagem provável e da prática artística e tudo isto embebido em indicadores da consciência do corpo como suporte de todas estas reflexões. Nesta via conceptual exponenciada, que multiplica as interrogações e as reformulações das interrogações, as respostas e as reformulações das respostas, a representação é apenas material de explicitação necessário para a invenção dos mecanismos de interrogação sobre a realidade.
Apesar da complexidade, a obra surge natural, segundo uma sequência de passos marcados pela ligação a práticas do dia a dia, a partir de acontecimentos que vão exigindo reflexão em seus variados tempos, ou de ideias que se vão ligando e chamando outras. Do mesmo modo, aí encontra fundamentos a escolha dos diversos materiais utilizados como o vidro, o plástico, a madeira, o papel…, a variedade de técnicas como o recorte, o desenhos, a fotografia, a pintura, o grafismo… e de métodos de montagem como a colagem simples, a assemblage, a inversão da tela, o díptico articulado, a estrutura em puzzle… Nessa experiência concreta e pessoal da realidade, na ligação orgânica a uma maneira de estar, se constrói a capacidade de abarcar uma malha intrincada de relações.
De acordo com este desenvolvimento natural, as obras de “Paraíso mais tarde” [2] encadeiam-se e enraízam na série anterior, “Reversível”[3].
A convocação da gravura de Dürer, Adão e Eva, é de várias maneiras incisiva. A escolha deste autor e desta obra em particular apresentam ao observador um tema base, o conhecimento. Márcia Luças utiliza a imagem simétrica da gravura de Dürer de 1504 tornando a imagem argumentativa num outro registo, o da análise sobre o seu próprio sentido, para o qual contribui, ainda, a exclusão da maçã da mão de Eva, as alterações das ramificações e na folhagem da árvore e a ocultação do texto da placa que Adão segura. A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, indicadora de dicotomias, questiona-se enquanto tal, no papel da sua imagem simétrica e indicia um olhar sobre o outro lado das coisas. Tem correspondentes visuais nas oposições transparência/opacidade; anverso/reverso; cima/baixo; racionalidade/intuição; definição/ambiguidade; finalidade/transição e ainda na presença física forte dos materiais em contraste com a sua própria fragilidade ou no carácter gráfico de alguns elementos em relação com situações de tridimensionalidade.
Não é possível deixar de ter em conta o significado da evocação do próprio Dürer, referente ele mesmo de uma atitude não conformista perante o conhecimento transmitido. E esta gravura documenta o seu trabalho de pesquisador de um cânone das proporções humanas, pesquisa em que se envolveu na sequência do conhecimento da existência do trabalho de Vitrúvio sobre as proporções da figura humana, a que se seguiu a opção de estudar directamente os textos de Vitrúvio e, depois, a vontade de encontrar as suas próprias soluções, publicadas em 1528[4]. A gravura de 1504 corresponde à primeira proposta de Dürer de acordo com os seus princípios sobre a harmonia do corpo humano. Mas prosseguiria esse estudo.
Utilizando a imagem reflectida como proposta de leituras “a começar pelo fim”, como apresentação da possibilidade do inverso ou da complementaridade do negativo, Márcia Luças oferece-nos indicativos de que os próprios processos de construção e recepção da imagem estão em questão. Sendo o espelho metáfora da consciência e de uma atitude reflexiva, remete-nos para a consciência da “percepção em retalhos”, da compartimentação do conhecimento e interpretação também compartimentada da realidade. De novo a árvore seccionada se torna metáfora. Cada parcela se converte num extracto da realidade. Na grelha construída para manter o puzzle, os deslocamentos de cada elemento, uma dessas focagens parciais da árvore, permitem chegar a níveis diferentes de significado (Inverno do meu descontentamento).
A lógica interna de cada trabalho de Márcia Luças inclui a provocação ou interpelação do observador para que resolva ou decida sobre a interpretação dos nexos e dos confrontos entre as sensações e os conceitos, o lugar do cérebro e do coração, das memórias e das emoções. Montagens de texto e imagem em combinações várias - por vezes justaposição simples sugerindo encadeamento, outras vezes em sobreposições com carácter de síntese - vão construindo sistemas de retroprojecção de impressões sensíveis e de conceitos. A luz atravessa o vidro, os materiais transparentes e translúcidos, revela o anverso e o reverso e o tempo entre os dois. Os elementos no espaço interior que funcionam como objectos/síntese indicam a outra possibilidade, o outro ponto de vista, materializado no outro lado. São assim as réguas que representam todos os instrumentos de medida e avaliação irresistíveis para o ser humano e servem a reflexão sobre as dualidades “visão global coerente/ particularismo” ou ainda “universalidade/circunstancialidade” presentes tanto na arte como na ciência. Em ambas, a tentação de desafiar o tempo. A tentação dos sistemas de classificação e das árvores [do conhecimento]...  
A tentação das árvores. Delicada ironia de Márcia Luças.


                                                                                                           Novembro de 2007


[1] Comunicação “Figuras atravessadas por paisagens lentas”, VII Curso Livre de Arte Ibero-Americana, FLUP, 2006.
[2] Série apresentada numa exposição que decorreu na Galeria Alvarez de 17 de Novembro a 31 de Dezembro de 2007.
3 Série apresentada numa exposição que decorreu na Galeria Alvarez de 20 de Janeiro a 1 de Março de 2006.

4 Os Quatro Livros sobre as Proporções Humanas publicados alguns meses depois da sua morte.


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